terça-feira, 30 de julho de 2013

HOMENS E MULHERES ATRAVÉS DO TEMPO



1. Você é feminista?


Antes de tudo, vamos descobrir de que lado estamos, não?
Afinal, você, leitor, está contra ou a favor do feminismo?
Existe um teste simples.
Você concorda que:
  • Mulheres devem receber o mesmo valor que homens para realizar o mesmo trabalho?
  • Mulheres devem ter direito a votar e ser votadas?
  • Mulheres devem ser as únicas responsáveis pela escolha de suas profissões, e que essa decisão não pode ser imposta pelo Estado, pela escola nem pela família?
  • Mulheres devem receber a mesma educação escolar que os homens?
  • Cuidar dos filhos deve ser uma obrigação de ambos o pai e a mãe?
  • Mulheres devem ter autonomia para gerir seus próprios bens?
  • Mulheres devem escolher se, e quando, se tornarão mães?
  • Mulheres não devem sofrer violência física ou psicológica por se recusar a fazer sexo ou por desobedecer o pai ou marido?
  • Tarefas domésticas são de responsabilidade dos moradores da casa, sejam eles homens ou mulheres?
  • Mulheres não podem ser espancadas ou mortas por não quererem continuar em um relacionamento afetivo?
Se marcou sim em todas ou quase todas… Sinto afirmar mas… Você é feminista!
(Teste adaptado de um original da Cynthia Semiramis.)
Cada um no seu lugar. Uns brincam, outros trabalham. Como deve ser!
Cada um no seu lugar. Uns brincam, outros trabalham. Como deve ser!

2. Machismo vs feminismo, a falsa dicotomia


Feminismo é a busca por direitos iguais para as mulheres.
Machismo é a dominação do homem sobre a mulher.
Os dois termos não são, nunca serão, não podem ser análogos. É uma falsa simetria. É como reclamar de não haver um Dia da Consciência Branca.
(Uma camisa “100% Branco” é de profundo mau-gosto, ao mostrar quem está por cima celebrando sua hegemonia. “100% Negro”, por outro lado, é a celebração de uma identidade subalterna tentando se afirmar contra todas as desvantagens inerentes no sistema. Captaram a diferença?)
O machismo, por definição, é anti-mulher mas o feminismo não é, nunca foi, nunca será anti-homem. O inimigo do feminismo não é você, homem de carne e osso lendo isso, mas a estrutura machista da nossa sociedade.
Outro dia, um amigo me disse:
“o feminismo levado ao extremo é pior do que qualquer machismo”.
Mas quando é que o feminismo foi levado ao extremo? Vocês já viram mulheres pregando discurso de ódio aos homens, dizendo que os homens não deveriam poder trabalhar, votar, assinar contrato? Nunca vi ninguém nem mesmo defender isso, quanto mais aplicar no mundo real.
Por outro lado, o machismo, em todas as suas vertentes, é aplicado todo dia, no mundo inteiro, em bilhões de mulheres. E, pior, o machismo mata.
Também tem gente que diz:
Não sou machista nem feminista, sou humanista!
Mas os três termos não tem literalmente nada a ver um com o outro: o machismo é um sistema de dominação, o feminismo é uma luta política por direitos iguais e o humanismo é o sistema filosófico materialista que coloca a humanidade em primeiro lugar  — em oposição à deus e à metafísica.
Não é nem que são termos opostos ou coincidentes, mas se referem a áreas completamente distintas.
Seria como dizer:
Não sou nem paulista nem canhoto, sou engenheiro!
Portanto, falar que “as feministas são tão ruins quanto os machistas” só faz expor o machismo de quem fala.
A feminista mais radical não tem como ser pior do que o machista mais brando. Por definição, é impossível.

3. “Homens e mulheres não são, nem nunca serão iguais!”

O feminismo não defende que homens e mulheres são biologicamente iguais, mas sim que devem ter direitos iguais.
Muitas vezes, entretanto, só se alcança a igualdade ou equivalência de direitos justamente atentando para as diferenças. A expressão constitucional “todos são iguais perante a lei” é mais corretamente interpretada se dizemos “tratar diferentemente os desiguais para que tenham acesso equivalente ao direito que a lei confere a todos”.
(Alguns leitores da versão prévia desse texto pediram para que eu falasse um pouco de Judith Butler, da distinção entre sexo e gênero, do gênero como performance, da construção social do gênero, etc, todos temas fascinantes e importantes, mas que são complexos demais pra um texto tão didático como esse aqui se propõe a ser. Aqui tem um trechinho que escrevi sobre isso.)
"Não qual é o problema de uma cantada na rua!"
“Não sei qual é o problema de uma cantada na rua!”

4. O machismo mata


Afirmar que as feministas são tão ruins quanto os machistas é como dizer que vítimas que clamam por justiça são tão incômodas quanto os criminosos.
A principal diferença entre o machismo e o feminismo é bem simples: o feminismo pode ter todos os defeitos do mundo, mas ele nunca matou ninguém. O machismo mata. Todos os dias.
Dez mulheres são assassinadas por dia no Brasil, colocando-o no 12º lugar no ranking mundial de homicídios contra a mulher. Uma em cada cinco mulheres já sofreu violência de parte de um homem, em 80% dos casos o seu próprio parceiro. Em 2011, o ABC paulista teve um estupro (reportado!) por dia. Na cidade de São Paulo, uma mulher é agredida a cada sete minutos.
A solução está, literalmente, na mão dos homens.
Não basta simplesmente não estuprar: é preciso não alimentar a cultura do estupro.
A violência contra a mulher não acontece num vácuo mas ela é possibilitada por todo um contexto de piadas machistas, de objetificação feminina, de controle do corpo da mulher. Quem cria esse contexto somos todos nós, homens e também mulheres.
Somos todos cúmplices.

5. Não minimize a dor do outro


Quando um amigo bate com o carro e se machuca gravemente, você…
  • minimiza o acidente dizendo que milhares de outras pessoas batem de carro todos os anos?
  • dá um esporro nele por não estar usando cinto?
  • menospreza, dizendo, “ah, aposto que você estava correndo”?
  • puxa a questão pra você, choramingando “pior fui eu que caí de bicicleta”?
Se você não faz isso com seu amigo que bateu com o carro (estaria indo rápido demais?), que foi assaltado na rua (será que deu mole?) ou que tem câncer de pulmão (quem mandou fumar?), por que fala coisas semelhantes quando as mulheres reclamam das muitas violências que sofrem?
O PapodeHomem publicou um relato da Paula Abreu sobre seu estupro.
Muitos leitores, sem conhecer nem a Paula e nem os detalhes do fato, tomados de uma ansiedade latente para exculpar o estuprador, começaram imediatamente a minimizar a gravidade do crime como também a buscar maneiras de culpá-la:  ela deve ter provocado, estava vestida de forma inadequada, tinha se colocando em situação de risco porque bebeu, jamais deveria ter ido à casa do homem, etc etc.

Machismo é isso: achar que você, homem, é quem vai determinar o que assusta ou não as mulheres. Achar que você sabe, mais do que elas mesmas, a verdadeira gravidade dos problemas que as afligem.
Se você nunca fez diálise e tem os rins perfeitos, não critique seu pobre amigo que reclama de ter que filtrar o sangue todo dia.
Tenha empatia pela dor do outro — especialmente se for uma dor que você nunca experimentou e, teoricamente, nunca experimentará.

 


6. “Então não pode mais fazer piada machista? Nem rir?”


Sou escritor. Já fui humorista profissional — escrevia pra Revista Mad. Levo liberdade de expressão à sério. Acho que podemos fazer piada sobre qualquer assunto, inclusive coisas terríveis como o Holocausto e o estupro.
Mas, da mesma maneira que tudo na vida, a diferença é como fazer.
Não existe piada inofensiva: se alguém gargalhou é porque alguém se fudeu.
(Quando digo isso, sempre tem alguém que duvida, mas desafio: me encontrem uma cena, piada, comédia em que ninguém se foda. Não existe. Essa é a base do humor.)
A questão é: quem se fode nessa piada?
Se é a vítima, o subalterno, a minoria, a mulher, o gay, o negro, etc, então essa piada é parte do problema. Ela confirma, apóia, sustenta a ideologia dominante. Ela está à serviço do machismo, do racismo, da homofobia.
Quando um gay é agredido com uma lâmpada na Av Paulista, os roteiristas do Zorra Total não podem levantar as mãos e se declarar inocentes. E nem quem assiste e ri.
Mas não é necessário os roteiristas se autocensurarem ou se tornarem vendedores de seguros. Por que não fazer piadas de gays… onde são os homofóbicos que se fodem? Piadas de estupro… onde quem se fode são os estupradores?
Os humoristas são livres para fazer piadas sobre o que quiserem. Mas também são cidadãos dotados de consciência. Os números da violência contra a mulher são impressionantes. Somos o país que mais mata gays. Nossos jovens negros são vítimas da maioria desproporcional dos homicídios.
A escolha é nossa, tanto humoristas quanto consumidores e repassadores de humor: queremos ser parte da solução ou parte do problema? Queremos estar do lado de quem mata ou estender a mão à quem está morrendo?
Essa discussão não é abstrata. Não estamos falando sobre princípios filosóficos. Tem gente morrendo AGORA.
Não deveria ser uma decisão muito difícil.
(Um texto muito interessante, com vários exemplos práticos, sobre como fazer piadas de estupro. Os dois vídeos abaixo são todos exemplos de “piadas de estupro do bem”. E esse aqui também.)

  O comediante norte-americano Louis CK fala sobre aquele delicado momento em que, na dúvida, melhor não transar pra não dar merda depois.

7. “Essas feministas loucas surtadas… e os pobres inocentes machistas que as fazem surtar”


Estava eu conversando com um amigo sobre uma menina que ambos conhecíamos. Uma menina louca, descompensada, barraqueira.
E, lá pelas tantas, ele disse:
“É gente como ela que dá uma má fama ao feminismo.”
Deixei passar um tempo e perguntei:
“Você percebe o machismo do seu comentário?”
“Pô, Alex, como assim machismo? Você também não acha essa mulher doida e chiliquenta?”
“Acho. Mas o feminismo dela não tem nada a ver com isso. Por que não dizer que é gente como ela que dá má fama…. às canhotas, às pernambucanas, às engenheiras, às librianas, às flamenguistas, às católicas? Por que você imediatamente associa a maluquice dela ao feminismo? Uma coisa não tem nada a ver com a outra…”
“Ah, Alex, mas é que a maioria das feministas que eu conheço são mais ou menos assim, sempre prontas pra briga, já falam comigo com dez pedras na mão…”
“Hmm… Posso propor uma teoria alternativa? A palavra-chave do que você disse é “comigo“. Já parou pra pensar que não é que todas as feministas que falam com você SÃO estressadas, mas que ESTÃO estressadas… por SUA causa? Que pode ser que o elemento em comum entre tantas mulheres estressadas seja justamente… você? Que talvez seja você que fale ou faça alguma coisa que as deixa estressadas?”
“Bem, eu sou meio machista mesmo…”
“Cara, todo mundo é. A começar pelas próprias mulheres, que quase sempre criam os filhos à base de estereótipos machistas, catando as toalhas que jogam pelo chão, não vigiando a sexualidade deles como vigiam a das filhas, não exigindo que arrumem os quartos como as meninas, etc etc. Quem é machista é a nossa sociedade, e ela fala, vive, respira através de nós, mesmo à nossa revelia. O máximo que podemos fazer é estar alertas. Vigiar nossas palavras. ter a humildade de ouvir de verdade quando nos acusarem de machismo. E tentar mudar.”
“Mas a fulana é louca, né? Não sou eu que estou vendo coisas!”
“É louca, sim. Mas isso tem tanto a ver com ela se dizer feminista como o fato dela torcer pro Fluminense ou ser formada em Odonto. O machismo não é reconhecer que ela é claramente surtada. Isso todo mundo vê. O machismo é achar que o desequilíbrio dela tem a ver com seu feminismo.”

8. “Não devo nada ao feminismo!

Faz pouco tempo, Talyta Carvalho, filósofa e orientanda do acadêmico amestrado Luiz Felipe Pondé, escreveu um texto chamado Não devemos nada ao feminismo. É um texto bem triste, profundamente reacionário, e marcado por uma completa ignorância histórica.
O artigo de Talyta é de uma má-fé impressionante. Em dado momento, ela tem a cara-de-pau de afirmar:
“Como mulher e intelectual, posso afirmar sem pestanejar: nunca precisei “lutar” contra meus colegas para ser ouvida, muito pelo contrário. … De minha parte, afirmo: não devo nada ao feminismo.”
Eu também afirmo: nunca precisei lutar para viver no Rio de Janeiro. Nunca. Jamais disparei um único tiro para ser carioca.
Mas isso é só porque, entre 1555 e 1565, meus antepassados travaram dez anos de guerra feroz contra os antepassados dos atuais franceses para decidir com quem ficaria essa baía tão linda.
Eu, pessoalmente, Alex Castro, não precisei brigar pelo Rio… porque alguém, antes de eu nascer, brigou por mim! Se não fossem essas pessoas, sabe-se lá se eu existiria ou onde teria nascido.
Entendem a má-fé da autora?
Ela, em 2012, não precisa brigar para ser ouvida na universidade porque gerações de mulheres, ao longo dos últimos duzentos anos, brigaram ferrenhamente para que essa ingrata hoje pudesse votar, se divorciar, cursar ensino superior, ter propriedade — direitos que elas mesmas não desfrutavam.
Você, leitora, deve muito ao feminismo. Se você acha que não, talvez não tenha entendido direito o que é o feminismo. Feminismo não é ser anti-homem, ou querer ser superior ao homem, ou ainda achar que homens e mulheres são iguais. O feminismo é a ideia radical de que homens e mulheres devem ter direitos iguais. Ponto.
Se uma mulher é sinceramente contra isso, então, confesso, tenho muito medo dessa pessoa.
Nossas vovozinhas e o Feminismo on Vimeo.

9. Brevíssima história das conquistas femininas no Bras

Durante todo o século XIX, os direitos civis das mulheres são alvo de grandes discussões no Brasil — discussões que sempre terminam em escárnio por parte dos homens.
Algumas datas das principais conquistas:
Só em 1827 as brasileiras ganham direito a cursar educação elementar. A admissão nas faculdades vem em 1879, seguidas de muito preconceito. Quando a primeira médica se forma, em 1887, ela não consegue encontrar emprego: quem iria se tratar… com uma mulher?! A primeira brasileira a obter o direito de advogar vem somente em 1899.
A situação do esporte também é interessante, por ser outra área tipicamente masculina. A primeira partida de futebol feminino é disputada em 1921. Sete anos depois, as mulheres conquistam o direito de participar dos Jogos Olímpicos e o Barão de Coubertin, idealizador dos jogos, renuncia do comitê olímpico, revoltado com esse absurdo. Nas Olimpíadas seguintes, em 1932, o Brasil manda sua primeira atleta, única integrante feminina da delegação, a nadadora Maria Lenk. Em 1964, acreditem ou não, o futebol feminino é proibido no Brasil, decisão que somente seria revogada em 1981!
O direito ao voto somente é conquistado em 1932. A primeira senadora, uma suplente, toma posse em 1976. A primeira senadora eleita seria apenas em 1990.
Nosso primeiro Código Civil, de 1916, é bastante específico ao explicitar na letra da lei a tradição de inferioridade feminina. Nas palavras da professora Lígia Quartim de Moraes:
“Com o casamento, a mulher perdia sua capacidade civil plena. Cabia ao marido a autorização para que ela pudesse trabalhar, realizar transações financeiras e fixar residência. Além disso, o Código Civil punia severamente a mulher vista como ‘desonesta’, considerava a não virgindade da mulher como motivo de anulação do casamento (…) e permitia que a filha suspeita de ‘desonestidade’, isto é, manter relações sexuais fora do casamento, fosse deserdada.”
Ou seja, enquanto fossem casadas e submetidas ao pátrio poder, as mulheres eram consideradas incapazes juridicamente, como crianças, deficientes mentais e mendigos, e não podiam agir como cidadãs livres e adultas, nem mesmo para assinar um contrato. Ah, e a lei do divórcio passa apenas… em 1977. Antes disso, o casamento era pra sempre.
Esse era o mundo antes do feminismo. Foi contra esse mundo que as feministas lutaram, e se insurgiram, e toleraram o escárnio e o deboche dos homens.
Talyta Carvalho só pode cursar USP, votar e, caso seja casada, assinar um contrato ou terminar seu casamento, graças às conquistas dessas mulheres a quem não deve nada.
Definição estranha de “nada”. Me parece que deve muita, muita coisa.
(Fontes para essa seção: Direitos conquistados na história e As mulheres e os direitos políticos no Brasil)
Caricatura australiana de 1908 sobre as sufragetes, mulheres que lutavam pelo sufrágio, ou seja, direito ao voto.
Caricatura australiana de 1908 sobre as sufragetes, mulheres que lutavam pelo sufrágio, ou seja, direito ao voto.

10. O direito à escolha


Estranhamente, o foco do texto de Talyta é liberdade de escolha:
O ponto da discussão é: em que medida a consequência do feminismo, para a mulher contemporânea, foi o estrangulamento da liberdade de escolha? … Outro direito que a mulher do século 21 não tem, graças ao feminismo, é o direito de não trabalhar e escolher ficar em casa e cuidar dos filhos. … Na esfera econômica, é inviável para boa parte das famílias que a esposa não trabalhe. Na esfera social, é um constrangimento garantido quando perguntam “qual a sua ocupação?”. A resposta “sou só dona de casa e mãe” já revela o alto custo sóciopsicológico de uma escolha diferente daquela que as feministas fizeram por todas as mulheres que viriam depois delas. (grifos meus)
Mais uma vez, a má-fé e desonestidade intelectual dessas afirmações é impressionante.
Pra começar, vamos lá, qualquer um aqui conhece várias mulheres do século XXI que escolheram sim ficar em casa e cuidar dos filhos. Algumas das minhas amigas mais fodonas e inteligentes, educadas nas melhores escolas e universidades para serem líderes modernas, fizeram tranquilamente a escolha de ficar em casa e cuidar dos filhos. Não foram impedidas. Não tiveram seu direito de escolha cerceado.
Talyta parece não perceber a enorme diferença entre:
1. o mundo de hoje, onde de fato há escolha, onde as mulheres podem trabalhar ou não, podem ser do lar ou não, e a prova disso é que todos conhecemos várias mulheres que trabalham fora, e várias mulheres que trabalham em casa, cuidando do lar e da família, e
2. o mundo pré-feminista, onde as mulheres de fato não podiam, eram impedidas, não tinham o direito legal de cursar escola ou universidade, disputar esportes, votar e ser eleitas, advogar, clinicar, assinar contratos, etc.
Ninguém, no Brasil de 1850, conhecia mulheres médicas e mulheres não-médicas, mulheres atletas e mulheres não-atletas, porque não havia a possibilidade, entre outras coisas, de mulheres serem médicas ou atletas.
O feminismo não acabou com a escolha de ninguém. Pelo contrário. Ele pegou um mundo onde a mulher não tinha diversas das escolhas acima e o transformou em uma mundo onde a mulher pode escolher ser médica ou não, ser do lar ou não, ser nadadora ou não.
E, sim, como apontou Talyta, algumas vezes nossas escolhas geram “constrangimento garantido” ou tem um “alto custo sóciopsicológico” (sic) mas esse constrangimento e esse “alto custo sóciopsicológico” (sic sic) só existem porque existe a escolha.
Bem vinda ao mundo dos adultos, Talyta. As mulheres antes não enfrentavam o custo de suas escolhas porque não tinham escolhas.
A liberdade de escolher traz com ela o ônus de lidar com os custos sociais da sua escolha.
Cursei História ao invés de negócios, como meu pai queria, e encarei o “alto custo sóciopsicológico” (sic sic sic) da cara feia dele por vinte anos. Assumi meu ateísmo e encarei o constrangimento criado pela minha bisavó carola. Decidi não ter filhos e respondo com paciência aos questionamentos dos amigos e parentes.
O que Talyta não entende é que o “constrangimento social” que ela aponta como prova do “estrangulamento da liberdade de escolha” é justamente a prova de que a liberdade de escolha não só existe como está sendo exercida em sua plenitude na arena social.
Devemos tudo isso ao feminismo. Esses direitos não teriam sido conquistados sem luta, sem briga, sem sangue. Não vamos esquecer que, faz poucos tempo, um juiz absolveu um homem acusado de estuprar uma menina de doze anos “porque ela se prostituía“. (Ou seja, se a mulher aluga seu corpo por dinheiro a alguns homens, então a boceta dela está livre pra todos! Mesmo se for menor de idade!)
Em nome da minha mãe, da minha irmã e da minha sobrinha, em nome de todas as minhas amigas, em meu próprio nome, que não tenho que viver na atmosfera sufocante do século XIX, eu agradeço.
(Os homens, como também são vítimas do machismo, também devem agradecimentos às feministas. Sobre como a cultura machista vitimiza o homem, recomendo, aqui mesmo no PapodeHomem, esse excelente texto do Frederico Mattos,

Passeata sufragista em 1910. Reparem que as mulheres comparam sua situação a uma prisão.
Passeata sufragista em 1910. Reparem que as mulheres comparam sua situação a uma prisão.

11. “Não sou feminista: sou feminina! Sou vaidosa!”


Ao mesmo tempo, muitas amigas com quem converso também fazem questão de rapidamente se esquivarem do “rótulo feminista”:
“não sou feminista, sou feminina.”
Como se isso quisesse dizer alguma coisa!
Existe uma lenda de que ser vaidosa é anti-feminista. Que uma mulher feminista não pode ser “feminina” — não sei bem o que quer dizer isso, ou como seria possível uma mulher não ser feminina, mas enfim.
É mentira.
Existem algumas feministas que preferiram abandonar alguns dos procedimentos tradicionais de beleza, por considerá-los imposição da sociedade patriarcal. E, de fato, se você pára e pensa, muito do que é considerado parte intrínseca da beleza feminina, como saltos altos e unhas compridas, são nada mais que marcadores de ociosidade. (Em outras palavras, ao usar saltos altos e unhas compridas você está sinalizando que não trabalha nem com os pés nem com as mãos. Veblen explica.)
Por outro lado, também existem muitas feministas que andam de saia, francesinha nos pés e bolsa de oncinha nos ombros. E por que não andariam?
Tanto patricinhas depiladas de chapinha nos cabelos quanto ripongas peludas de sandália de couro podem ser feministas. Não existe nada no feminismo que seja anti-esmalte nas unhas. O feminismo defende direitos iguais e maior liberdade de escolha para as mulheres — e isso inclui a liberdade de pintar as unhas ou não, de ser juíza ou ser puta, de depilar ou não depilar, etc.
(Texto relacionado: Os cabelos de um homem: uma teoria do consumo conspícuo capilar)
Um mundo cada vez mais distópico.
Um mundo cada vez mais distópico.

12. Essas feministas radicais…!

Se existe uma atitude que você gostava de ter, uma palavra que você gostava de usar, e hoje você não pode mais por causa das feministas… Se o discurso feminista te incomoda, se você se sente patrulhado pelas “feminazis mal-comidas”, se você mudou seu comportamento por causa disso…
Então, sim, talvez sem nem saber, talvez contra a sua vontade, vamos encarar os fatos, faça um pouco de autorreflexão, seja o advogado do diabo de si mesmo… e admita:
Não é porque elas são chatas, histéricas ou radicais. Provavelmente, os seus comentários e atitudes é que eram machistas.
Mas não precisa ficar assustado: tem cura.
Sugiro um exercício em auto-questionamento:
Por que será que essa besteirinha que eu falo suuuuuper na boa incomoda tantas mulheres? Ok, é possível que elas sejam umas feminazis patrulheiras mal-comidas (sic sic sic!), mas também pode ser, quem sabe, que o problema seja comigo. Hmmm. *mão no queixo* Talvez as coisas que eu acho mais normais sejam altamente ofensivas para muitas pessoas. Talvez seria melhor se eu ouvisse mais os outros. Talvez eu devesse aproveitar essa oportunidade para refletir sobre mim mesmo, meu comportamento, minhas prioridades, minha vida…
Entendo sua posição. É muito difícil ser subitamente acusado de machista. (E de racista, e de homófobo, etc.)
(Para te ajudar nesse momento tão difícil: Como agir ao ser chamado de machista, racista, homofóbico – Um guia para nós todos)
Infelizmente, nesse momento, sob pressão, muitos homens simplesmente piram. Ao invés de simplesmente baixar as orelhas, enfiar o rabo entre as pernas e ouvir, começam a cagar pela boca.
Nada pode ser mais constrangedor do que ver um homem, até então sensível e sensato, se defendendo de acusações de machismo seja dando carteirada (“não posso ser machista porque escrevi isso ou fiz aquilo”) ou, pior ainda, acusando as feministas de serem extremadas, exageradas, radicais.
Vamos combinar: se o feminismo é a busca por direitos iguais para as mulheres, então é impossível ser feminista radical. Se você acha que homens e mulheres devem ter direitos iguais, então você acha que homens e mulheres devem ter direitos iguais. Não existem gradações: não dá pra ser moderadamente a favor de direitos iguais ou radicalmente a favor de direitos iguais.
Feminista radical não existe. Ao reclamar da patrulha das feministas radicais, por mais delicadamente que seja, você está apenas expondo seu machismo. E todo mundo está vendo.
(Alguém que defenda que as mulheres devem estar acima dos homens não é uma feminista: é uma female supremacist, ou femista, ou misandrista, e isso é outra história, outra tara, outra loucura. Não tem nada a ver com feminismo, nem com nada que o  feminismo representa. Aliás, não sei nem se existem, pois nunca vi essa posição ser defendida a sério por ninguém.)
Tudo explicado!
Tudo explicado!

13. Teste o seu machismo


Imagine que você tem um grupo de pessoas e quer descobrir quantos são alérgicos a uma substância. Pois bem, você pinga uma gotinha na mão de cada um. Quem reagir à substância, ficar com coceira ou inchaço, é porque é alérgico. Por definição. Ser alérgico é isso: reagir a essa substância.
Pensem no feminismo como essa substância. Se você é exposto ao feminismo e fica com inchaço ou coceira na mão, se sente incomodado e patrulhado, precisa mudar seu modo de agir e de falar, então é porque seu modo de falar e de agir eram machistas. Machismo é isso. Não tem outra definição.
Se você acha que não, está em denegação. Mas a coceira na sua pele não te deixa mentir.

14. “Poxa, não sou machista! Até ajudo na casa!”

Estados Unidos, mesa grande, gente do mundo todo. O assunto: casa e filhos, homens e mulheres, machismo e feminismo.
Então, um dos homens de orgulho afetado, afirmou:
“Ah, eu sempre ajudo minha mulher com as tarefas domésticas.”
Para sua enorme surpresa, a outra brasileira da mesa, casada com um holandês e morando há 30 anos no exterior, carimbou:
“Estão vendo agora porque eu sempre digo que o homem brasileiro é machista?”
O pobre brasileiro ficou transtornado. Não entendeu nada. Pensou até que fosse ironia. Pensou que talvez ela não tivesse ouvido bem. Repetiu:
“Está falando de mim? Mas acabei de dizer que ajudo minha mulher em todas as tarefas da casa!”
“Pois é. Ao dizer que “ajuda”, o que você está dizendo é: essa obrigação é só dela, mas eu, olha como sou tão legal e tão magnânimo!, até desço aqui do meu pedestal e… ajudo!”
E acrescentou o marido holandês:
“Lá em casa, nós dois dividimos as tarefas.”

15. Fábrica de machista

Estava eu na casa de uma amiga quarentona, profissional, indepentente, decidida, fodona.
Passamos pelo quarto do seu filhão pós-adolescente, de barba e bigode, e ela vê sua toalha de banho embolada no chão. Vai lá, pega, estica na corda, e ainda comenta:
“Tsc tsc, igual ao pai!”
Que coincidência!, pensei. E, como não consigo ficar calado, disse:
“Você já considerou a possibilidade de ele estar ficando igual ao pai, entre outras coisas, por sua causa?”
Ela ficou imediatamente defensiva e respondeu:
“A culpa é sempre da mulher, né? Se eu fosse estuprada, você também iria dizer que foi culpa minha que usei uma saia curta demais!?”
E ela continuou, em tom de desafio:
“Era pra eu fazer o quê? Hein? Hein?”
“Hmmm, que tal simplesmente não pegar a toalha?”
“E quando meu filho chegar da universidade e quiser tomar banho, ele vai se enxugar com o quê?”
“Bem, é justamente esse o problema, não é? Você não está dando ao seu filho a menor chance de crescer um homem autossuficiente e organizado. Ele larga a toalha embolada no chão e, quando chega da aula, ela está pendurada, esticadinha e seca no box. É como se fosse mágica. Por que ele iria mudar seu comportamento? Pra ele, a situação está perfeita e resolvida.”
“Mas, Alex, se eu não catar a toalha, ele vai chegar em casa, vai direto pro banho, e ainda vai gritar de lá: ‘manhêêêêê, cadê a minha toalha?!’ E aí?”
“Eu sugiro que você responda: ‘a sua toalha deve estar onde você deixou, filhão!’ Deixa ele se enxugar um dia com o tapete do banheiro. Molda o caráter e só faz bem.”
Todo o poder.
Todo o poder.

16. O machismo da nossa criação


Naturalmente, não são só as mulheres que criam os filhos e filhas para serem machistas, mas todos nós, homens e mulheres, mães e pais, ricos e pobres.
Tenho outro casal de pais que obriga sua filha adolescente a manter seu quarto pronto para receber visita do Rajá da Índia, enquanto o quarto do filho parece um depósito de lixo. Eu já sabia a resposta, mas perguntei mesmo assim. E minha amiga respondeu:
“Ué, Alex, ele é menino! Não precisa ser arrumadinho.”
Em outra família, o filho de dezessete pode trazer quantas namoradas quiser e eles ficam trancados no quarto, estudando filosofia estruturalista, apreciando sua coleção de selos búlgaros ou transando como coelhos — os pais preferem nem saber. Já a filha, de dezesseis, não pode nem falar em ter namorados. Diz a mãe:
“Ela ainda é muito jovem, não está na idade. Os homens dessa idade não prestam, só querem saber da mesma coisa!”
E tenho vontade de perguntar:
“Se não fossem irmãos, você aprovaria o seu filho como namorado para sua filha?”
Se a resposta for negativa, é caso de reconsiderar a educação que está dando para ambos.
Entretanto, a grande maioria das mães e pais que conheço educa a prole exatamente assim.
O estupro talvez seja o pior exemplo: estamos há séculos ensinando as meninas como se vestir e como agir – para a segurança delas, claro! Mas talvez fosse a hora de ensinar os meninos como não-estuprar.
Quando ensinamos nossa filha a não usar saia tão curta, não é que estamos perpetuando uma prática milenar patriarcal de controlar o corpo das mulheres! Nãããão! É porque queremos o bem delas, pôxa!
Mas, dentre esses pais que controlam as saias das filhas com tanta ênfase e afico, quantos já usaram a MESMA ênfase e o mesmo afinco para controlar os hormônios e os impulsos dos filhos? Para ter uma conversa franca e aberta sobre estupro e escolha?
São lições que filhos e filhas vão levar para toda a vida. Esses rapazes e moças vão ter que se esforçar muito para apagar e superar esses ensinamentos perniciosos. A maioria não vai conseguir e, em poucos anos, estará repassando essas lições para seus próprios filhos.
Se houvesse um manual sobre como perpetuar a cultura machista, ele não daria receitas tão infalíveis.




17. “As mulheres são as maiores machistas!” E daí?


Quando escrevo sobre racismo, sempre vem alguém afirmar (como se isso resolvesse a questão!) que os maiores racistas são os próprios negros. Idem com o feminismo. Parecem dizer:
“Se as próprias mulheres são machistas, por que EU teria que deixar de ser?”
Devo mesmo entender tudo errado. Concordo que as mulheres, muitas vezes, são as maiores machistas, mas isso só comprova a gravidade e a urgência do problema. A mulher, quando se deixa infectar pelo machismo e se transforma em vetor da cultura machista, torna-se vítima e algoz, duplamente vítima.
É como se o Aedes aegypti não só transmitisse a dengue, mas também morresse dela.
Nós todos, homens e mulheres, crescemos em uma sociedade profundamente machista, que nos infectou desde cedo com seus valores e prioridades. Essa sociedade existe e fala através de nós: ela usa nossos corpos e mentes, nossa própria carne, para se perpetuar através do tempo e do espaço, e somos seus cúmplices e possibilitadores mesmo quando discordamos dela.

18. O machismo não é um problema individual


Nunca acusei nem jamais acusaria ninguém de machista. Um, porque é mal-educado. Dois, porque o machismo ou não das pessoas individualmente é irrelevante.
Ninguém está inocente nesse tribunal, nem mesmo as próprias vítimas — que muitas vezes são algozes de si mesmos. Quem pode levantar a mão e jurar, de cara limpa, sua completa inocência?
Uma típica tática do deixa-disso brasileiro é definir machismo de modo tão restrito que a palavra se esvazia. Realmente, se machista é só aquele cara que ativamente vai lá e dá na cara da mulher, então os machistas não somos nós, os cultos e bem-educados, mas só aqueles pedreiros e operários brutos e rudes, lá longe, distantes.
O machista é sempre um outro.
Por outro lado, instituir uma caça às bruxas aos “machistas” também é um caminho sem volta, pois acaba fazendo do machismo um pecado quase religioso, daqueles que se comete até em pensamento.
Vai ter homem dizendo que não é machista porque nunca bateu em mulher ou que é machista porque sente tesão pela bunduda mesmo achando ela burra e chata. E daí?
Quem sou eu pra me arvorar em tribunal da inquisição e apontar meu dedo para dizer que fulano ou beltrano é machista?
O problema do Brasil não é o machismo individual de uma ou outra pessoa, mas o machismo estrutural, constitutivo, da nossa sociedade.
Machistas somos todos nós, querendo ou não.

19. Como dizer pra alguém que ele soa machista


Nesse ponto, posso imaginar homens e mulheres fazendo a seguinte objeção:
 Alex, se somos todos machistas, então ninguém é machista, problema resolvido! É isso mesmo que você está falando?


Claro que não, hipotético leitor. Estou querendo dizer que pouco importa o que a gente É (sermos machistas, racistas, etc): o importante é o que a gente FAZ (termos atitudes machistas, racistas, etc).
Esqueça por um instante essa sua sanha classificatória ontológica de apontar o dedo pros outros, ou para si mesmo, e rotular “você é isso”, “eu sou aquilo”, e pense o seguinte:
Crescemos todos em uma sociedade machista, somos todos potencialmente machistas, corremos todos o risco de termos atitudes machistas. E é exatamente por isso que devemos sempre vigiar não nossa pretensa essência, mas nossas simples ações cotidianas. São essas ações que moldam e definem a pessoa que somos.
O homem que acha que “pode” fazer uma piada machista porque já “estabeleceu suas credenciais feministas” claramente não entendeu nada.
O vídeo abaixo, em inglês, é sobre como dizer a uma pessoa que ela soa racista, mas os ensinamentos são rigorosamente iguais para o machismo.
O segredo é o seguinte: cuidado com a conversa “você-é”. Não leve a conversa para esse lado. Não deixe que a outra pessoa leve a conversa para esse lado. Pouco importa quem ela é. Você não tem acesso a quem ela “realmente é”. Isso é sair do foco.





20. “Feminismo é coisa de mulher”


Não é verdade.
A luta por direitos iguais entre homens e mulheres interessa a ambos os sexos. Ao libertar as mulheres, o feminismo também liberta o homem da sufocante obrigação histórica de tomar sempre a iniciativa, de estar no comando, de ser o provedor, de ter que ganhar mais.
O feminismo é antes de tudo uma luta por direitos HUMANOS. A nossa espécie enquanto espécie não pode ir pra frente enquanto metade for escravizada pela outra metade.

21. A inocência dos homens


As mulheres são tão responsáveis quanto os homens pela perpetuação da cultura machista, é verdade. Com uma grande diferença: só os homens se beneficiam.
Nenhum homem é inocente dos crimes do machismo.
Mesmo que nunca tenha feito nada de errado, todo homem se beneficia da estrutura de dominação criada pelo machismo.
Sempre que escrevo sobre feminismo, escuto uma variação do mesmo comentário abaixo:
Preciso compartilhar isso, Alex. Acho engraçado, mas existe um fenômeno que me deixa putíssima. A mulher fala, fala, fala, e o cara resiste, treta, discorda. Daí basta um outro homem falar- e a mesmíssima coisa! – pra ele se prestar a ouvir, entender, concordar…
Cada vez que eu, um escritor, sou levado a sério por falar algo que, se eu fosse escritora, teria caído em ouvidos surdos, estou me beneficiando do machismo estrutural da nossa sociedade, querendo ou não.
Tanto homens quanto mulheres introjetam o machismo, mas se apropriam dele de forma assimétrica: para os homens, algumas desvantagens e várias vantagens; para as mulheres, praticamente só desvantagem.
Uma das grandes diferenças entre homem e mulher está justamente na vasta gama de privilégios desfrutados pelos homens, muitas vezes sem nem se dar conta de que são privilégios.
Se você pergunta a um homem quando foi a última vez que sentiu medo de morrer, vai ouvir alguma história sobre uma aventura ou um quase crime acontecida meses ou anos antes; se pergunta para uma mulher, ela vai contar algo que aconteceu hoje de manhã ou ontem à noite. Para nós homens, andar pela vida sem medo de morrer ou de ser estuprado é uma coisa tão normal que nem nos damos conta. Mas, do ponto de vista de uma mulher, esse é justamente um dos maiores privilégios masculinos.
A pergunta é simples: você está no time dos que receberam mais do que a média e, portanto, pode abrir mão de algumas regalias em prol de quem não teve as mesmas oportunidades? Ou recebeu menos do que média e, portanto, ainda precisa de todas as vantagens que puder agarrar?
O que acha? Quem é você?
Será que nós, homens, podemos abrir mão de alguns dos privilégios, regalias e direitos que adquirimos ao longo de milênios de patriarcado ou será que vamos nos aferrar com unhas e dentes ao mundo de nossos avôs?
Não basta simplesmente não ser machista: como a sociedade se estrutura de forma machista, é necessário agir individual e estruturalmente para abrir mão destes privilégios.
Se a vida fosse um videogame, ser homem, branco hétero seria com certeza o nível de dificuldade mais baixo.
Como funciona o machismo.
Como funciona o machismo.

22. Nosso baralho está viciado


A própria estrutura da nossa sociedade é tão arraigadamente machista que não é necessário haver machistas no controle. De certo modo, essas pessoas seriam até contraproducentes: chamariam muito atenção. Basta que todos façam seu trabalho honestamente, que a polícia desconfie sempre das mulheres que gritam “Estupro!” ou que as agências de publicidade continuem sempre objetificando a mulher, além de mil outras pequenas coisas que nos soam totalmente naturais, e pronto, as mulheres continuarão efetivamente afastadas dos centros de poder — sem que exista uma única lei contra elas! Mesmo com uma presidenta em Brasília…
Mudar nossas próprias opiniões é razoavelmente fácil. Nossa tarefa é mudar as próprias bases da sociedade. Reescrever nossa teoria de Brasil.
Nossa sociedade não se organizou sozinha, nem caiu pronta do céu: foi organizada por muitos homens (ênfase em “homens”), ao longo de muitos séculos, e obedece, via de regra, aos interesses de quem a organizou – interesses muitas vezes conflitantes e contraditórios, pois a sociedade é fruto não de uma “conspiração a portas fechadas”, mas de um longo processo social e político.
No caso do Brasil, nossa sociedade foi engendrada por uma elite machista, classista, hierarquizada, racista, paternalista, hipócrita e autoritária, e continuamos funcionando de acordo com esse paradigma até hoje, mesmo que sob o verniz da democracia e do estado de direito.
Então, se todos os brasileiros magicamente deixarem de ser machistas mas as estruturas e instituições permanecerem inalteradas, essa nossa hipotética sociedade sem machistas continuará intrinsecamente machista e marcada pela mais profunda desigualdade de gênero.
Acredito nos bons sentimentos de todos, mas não deixo de achar incrível que, mesmo ninguém sendo machista nessa nossa sociedade tão linda, o resultado final é que as cidadãs brasileiras sempre acabam se fudendo.
O baralho que herdamos dos nossos antepassados já está viciado para beneficiar sempre um tipo específico de jogador. Não basta somente que nós, os jogadores beneficiados, simplesmente não trapaceemos.
É necessário trocar de baralho.

23. “O corpo é dela, a boceta é dela”


Se você esquecer tudo desse texto, lembre-se apenas disso. É a diretriz primeira.
Pior que não poder votar, não poder trabalhar, não poder dar opinião, pior que tudo isso é não ter autonomia sobre seu próprio corpo. Na prática, autonomia sobre o próprio corpo é o que distingue, de um lado, os seres humanos adultos racionais responsáveis e, do outro, os bichos, as crianças, os escravos, os incapazes, os muito idosos, os deficientes mentais… e as mulheres!
Nós, homens, desfrutamos de total autonomia sobre nosso corpo. Ninguém nos diz o que fazer com ele. Podemos fazer ou não vasectomia, podemos ou não nos tatuar, podemos ou não sofrer o exame de próstata. E mesmo pequenas intrusões geram escândalo: recentemente, a Marinha teve que explicar as razões operacionais de sua decisão de não aceitar pessoas com tatuagens visíveis.
Por isso, cada vez que damos pitaco no que deve ou não ser feito com o corpo das mulheres, elas se sentem inferiorizadas, infantilizadas, objetificadas, invadidas. Com razão. Se não podem decidir nem isso, não podem decidir nada. Não são nada.
Então, vamos combinar. Sei que é difícil mas fique de boca fechada. Ok, o filho é seu, mas até ele sair de lá, o útero é dela. A decisão é dela. O corpo é dela. A boceta é dela.
Sempre vale a pena lembrar que só existem duas reações aceitáveis quando sua namorada avisa subitamente que está grávida:
1. Se vocês já tinham conversado sobre isso e decidido ter o filho, comemore com ela e comece a escolher o papel de parede;
2. Se foi uma surpresa, mantenha-se calmo, faça uma expressão neutra, coloque a mão em seu ombro e pergunte: “o que VOCÊ quer fazer, meu amor?” Depois, fale o mínimo possível e siga as deixas dela. Boa sorte.
Parece que estou te aconselhando a se submeter à sua mulher, uma verdadeira emasculação!, mas só parece assim porque estamos tão acostumados a mandar nas mulheres.
Não é submissão ao seu vizinho você NÃO ir lá escolher o papel de parede dele: quando você escolheu o seu, ele também não interferiu.
Estenda às mulheres a mesma cortesia que o mundo sempre lhe estendeu: não dê pitaco no corpo delas.

24. Aprenda a hora de ficar calado


Não diga às mulheres o que fazer.
Nada pode ser mais intrinsecamente machista do que você, homem,  ó tão feminista e ó tão razoável, querendo dizer às feministas como devem se comportar. Que seriam mais ouvidas se fossem menos agressivas. Que deveriam ser mais dóceis. Que não entende porque estão brigando logo com você que é tããão fofo, tão feminista, tão amigo!
Bem, deixa eu bater uma real:
Se você, homem, a essa altura do campeonato, ainda se acha no direito de dizer pras mulheres como devem se comportar; se acha que cabe a você determinar qual é a melhor maneira do feminismo alcançar seus objetivos; se acha mesmo que é aceitável esse tipo de comentário ao mesmo tempo autoritário e condescendente, então, meu amigo, você não entendeu nada.
Mas tem conserto: fecha essa boca, abre esse ouvidos.
Para um homem, simplesmente ouvir as mulheres, sem interpelar grosseiramente nem minimizar as agressões sofridas, já é grande parte do processo.
Boa sorte.

Postado por: Jussara SARTORI

Escritora, Poetisa &Freelancer

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